quinta-feira, 20 de maio de 2010

A obra sem autor

A obra sem autor
(Gilton Lobo)

O salão apodreceu. Quem estava perto da porta, saiu em desespero. Ouviu-se em alto e bom som um “puta que o pariu!”. Outro: “Quem soltou essa carniça?”. O boteco se tranaformara, naquele momento, no palácio internacional da podridão. Todos - até João Birita, que estava em estado ômega de bebedeira -, usaram a camisa como filtro nasal. Seu Almeida, assumindo o posto de dono do estabelecimento, mais vermelho do que já é, proclamou: “O responsável por esta proeza está convidado a se retirar... e nem precisa pagar a conta”.



Passado um tempo, ninguém assumindo o incidente, Zé Bentinho, que já estava por algum tempo pensando como pagaria a conta da farra que fizera, levantou-se e, feito um político extasiado, subiu numa mesa, fazendo dela o seu palanque:

"Eu que até hoje nunca fui famoso,
pois, por fazer cordel a vida nada me deu,
aproveito este momento, de cunho majestoso,
para exaltar a glória do que aqui se sucedeu.
E, se é certo que ninguém ficou alheio ao fato seboso,
é óbvio que foi sucesso a obra do autor que se escondeu.

Como quis sempre ser famoso um dia,
mas como cordelista a fama me esqueceu,
declaro como minha a rejeitada autoria,
da obra fedorenta e magnífica pelo tanto que fedeu.


Agradeço ao bar a gentileza e a cortesia
de dispensar a conta, esse prêmio agora é meu.
Aos que ficam: sejam tutores dessa minha euforia
e espalhem por aí, que quem soltou esse peido fui eu".

Morte e Vida Severina

Morte e Vida Severina
(João Cabral de Melo Neto)

O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.


Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.


Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.


Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.


Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.


E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).


Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.


Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.